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Felizes eram os tempos em que os arquitectos e estudantes de Arquitectura em Portugal logravam poder discutir “O problema da casa portuguesa” ou “Para uma arquitectura portuguesa de hoje”2. Hoje, os infelizes – nós – são violenta e impreterivelmente forçados a incluir no seu debate as questões da empregabilidade, da crise financeira, dos mercados, do investimento público, do privado, do público-privado, das PPP e a restante terminologia que, humildemente confesso, ainda me sinto incapaz de dominar. Assim, e subscrevendo a apreciação sobre o engano de Apeles, de acordo com Saramago3, sou eu próprio o sapateiro e doem-me os joelhos.

O direito à prática disciplinar em arquitectura tem, há muito, vindo a ser posto em causa por uma esquizofrenia ideológica da autoridade de acreditação de cursos de Ensino Superior em Portugal e é, cada vez mais, negado por um estado de sítio.

Não me conduzirá este discurso – pela inutilidade do esforço – a lembrar que a disciplina da Arquitectura é, entre todas das que aufere mais escolas em Portugal (entre escolas públicas ou particulares e cooperativas) e forma, visivelmente e sem necessidade de recorrer a estatísticas, um número exagerado de jovens arquitectos todos os anos. Tão pouco me parece coerente a insistência na crítica à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) que permite a formação de mais de mil arquitectos por ano, quando o País – este país – deles não necessita e dificilmente virá a necessitar, tão cedo.

Com aparente razão, os que defendem a liberalização do acesso à profissão, argumentam que não há motivo para privar a liberdade de cada jovem na escolha do seu percurso superior. Os outros, dos quais me confesso mais partidário, recusam um estádio selvático e anárquico, alheado de preocupações sociais e de cumprimento civilizacional. A formação em excesso de lugares socialmente desnecessários é uma atentado público às expectativas dos jovens e o sistema português fá-lo.

Justamente, um sistema que se organiza sobre o pressuposto do incumprimento de um direito que o próprio sistema cria é acéfalo. O sistema de Ensino Superior Português é acéfalo e é responsável pela torrencial e miserável condição de Arquitecto em Portugal que os mais jovens sentem agora e os mais velhos sentirão depois. Ao longo das últimas duas décadas, abriram-se vagas e cursos superiores de Arquitectura (alguns com uma autonomia científica tão discutível como discutida) sem um momento de reflexão e de integração nacional sobre a consequência dramática que essa postura, avessa à critica, ao critério e à responsabilidade, viria a ter no desempenho social de uma profissão.

O discurso das oportunidades em tempos de crise, para além de surgir exclusivamente em tempos de crise, surge como consequência do desânimo colectivo e, claro, pela constatação universal da escassez das oportunidades – o que é, por si, um péssimo prenúncio em relação à sua fiabilidade. Na verdade, é fácil constatar que quem vende oportunidades em tempos de crise está a vender uma falácia. Crise – pelo menos a que se conhece por cá – não é sinónimo de oportunidades, mas sim de um desastroso e atroz retrocesso, consequência dos erros que sucessivamente temos vindo a cometer e nos quais parecemos querer insistir.

A atribuição repetida e constante de prémios internacionais a arquitectos portugueses faz sublinhar o reconhecimento universal das identidades da Arquitectura portuguesa, desde o Inquérito, e sobre o que se passou antes do Inquérito, e é um alimento para o nosso orgulho colectivo. Não é, no entanto, alívio saber que o dramático problema se estende, por exemplo, ao discurso do arquitecto Eduardo Souto de Moura que, com a habitual frontalidade e honestidade, nos relembra a situação alarmante da falta de trabalho.

Se fossemos como Apeles, e gostaria que fossemos, seríamos sapateiros humildes que, por não termos feito os estudos necessários para falar do assunto, ficaríamos com a dor nos joelhos e continuaríamos a falar de sapatos. Mas os arquitectos (mais cedo os mais jovens, mais tarde os mais velhos) estão com insuportáveis dores nos joelhos e vêem-se competentes para falar nisso. Na busca de soluções a resposta imediata é a menos corajosa. A emigração, seja o mercado de trabalho e trânsito de pessoas livre, ou não, temporária ou prolongadamente, é – em todos os sentidos – a negação de um problema que é nosso e a fuga à sua resolução, que é de responsabilidade colectiva.

Alexandre Alves Costa4, citando livremente José Gil, disse que o significado do “problema da identidade é, antes de mais, fazermos da identidade um problema’’. Resigno-me com a ideia de que a discussão sobre a disciplina da Arquitectura seja em parte assim, faz parte da sua própria condição. Não deixo de estar, apesar disso, convicto de que para os estudantes de Arquitectura e arquitectos urge uma enorme reunião colectiva – presencialmente, em pensamento ou em algum outro suporte.

Que sirva a formação mais vasta e completa que se conhece – a do arquitecto – do ponto de vista do conhecimento e da construção do discurso crítico, para lavrar um vigoroso debate, sobre a prática disciplinar, cujas soluções só podem ir num sentido: libertar o ambiente hostil da conversa de um arquitecto e devolver a oportunidade de se poder discutir “O problema da casa portuguesa” ou “Para uma arquitectura portuguesa de hoje.” |

 


1  Tema da Banda de indie rock iraniana, exilada em Londres, Take it Easy Hospital. 

 

2  Fernando Távora. O problema da casa portuguesa. Lisboa :
 Manuel João Leal, 1947. Reedição e ampliação do artigo O problema da casa portuguesa. Aléo. (10 Nov. 1945). 

 

3 “Apeles podia consentir que o sapateiro lhe apontasse um erro no calçado da figura que havia pintado, porquanto os sapatos eram o ofício dele, mas nunca que se atrevesse a dar parecer sobre, por exemplo, a anatomia do joelho. Em suma, um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar. À primeira vista, Apeles tinha razão, o mestre era ele, o pintor era ele, a autoridade era ele; quanto ao sapateiro, seria chamado na altura própria, quando se tratasse de deitar meias-solas num par de botas. Realmente, aonde iríamos nós parar se qualquer pessoa, até mesmo a mais ignorante de tudo, se permitisse opinar sobre aquilo que não sabe? Se não fez os estudos necessários, é preferível que se cale e deixe aos sabedores a responsabilidade de tomar as decisões mais convenientes (para quem?).

“Sim, à primeira vista, Apeles tinha razão, mas só à primeira vista. O pintor de Filipe e de Alexandre da Macedónia, considerado um génio na sua época, esqueceu-se de um aspecto importante da questão: o sapateiro tem joelhos, portanto, por definição, é competente nestas articulações, ainda que seja unicamente para se queixar, sendo esse o caso, das dores que nelas sente.’’ José Saramago. Crime contra a humanidade? Expresso. Lisboa : Impresa. Caderno de Economia (18 Out. 2008).

 

4   Alexandre Alves Costa. Nós somos da Póvoa do Varzim. JA: ser português. Nº 237 (Out./Nov./Dez. 2009), p. 81-92; Última Aula, FA/UP, 2010.


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